Sobre o “Paraíso líquido”

Nuvem

Cuiabá, primavera-verão de 2013

Olá, Luiz!

Perdão pelo atraso excessivo, mas as coisas fora da literatura aqui foram bem atribuladas, tive pouco tempo pra ler nessas últimas semanas, e como queria atrasar a resposta pra depois da conclusão do Paraíso líquido, acabei deixando seguir.

(…)

Falando com o Cesar Silva aqui no Facebook, acabei comprando os Anuários de 2010 e 2011, depois quero ler a tua entrevista lá. E também assinei o jornal Rascunho pra acompanhar as novidades do mundo literário. Eu sei que tem em PDF de graça na internet, já abri algumas edições aqui, mas parece que no computador eu sempre encontro motivos pra não ler ou postergar indefinidamente. Agora acompanharei tua coluna lá com afinco.

Eu tinha separado o link com os minicontos do Lama aqui pra ler, mas ficaram nessa mesma encruzilhada do Rascunho, então fico contente em saber que vai sair em papel, lerei com gosto. E o link da resenha do Lanark, do Alasdair Gray, me deixou salivando pra comprar! Se um dia eu falir você será um dos culpados, Luiz. hehehe

Agora, quanto ao Paraíso líquido.

O que salta aos olhos, de cara, é uma característica do teu texto que comentei contigo pessoalmente já: a simplicidade. De uma forma boa, claro, uma simplicidade que pega o leitor pela mão e passeia pela história. É claro que a natureza de alguns contos distorceu essa simplicidade, nem tanto temática mas estruturalmente, transformando-os em contos que eu provavelmente não largaria na mão de alguém não habituado à leitura (o próprio conto Paraíso líquido me parece um bom exemplo), mas é claro que isso tem lugar dentro de um livro que, na minha opinião, é um caldeirão experimental. Você brincou e brincou aqui, mas a diversão é nossa.

Me parece natural dizer que gostei de uns mais que de outros, embora todos tenham sido muito bons. O primeiro, particularmente, explodiu minha cabeça. Primeiro contato é uma pequena obra-prima. Por vários motivos. Em primeiro lugar pela linguagem fugaz e entrecortada de criança, parágrafos curtos, palavras simples, sequência ordenada. A maneira como é narrada é verídica, cativante, como se saída mesmo da boca de uma criança. O mistério do conto, a existência do alienígena, não é colocado em dúvida por um segundo que seja até o momento inegável da revelação. Por mais que os sinais estejam lá, escancarados, o garoto não se deixa convencer, se prende a essa idealização infantil da existência do extraterrestre. Achei muito realista. E pra completar: a história paralela do avô no hospital, que dá uma carga dramática fodida ao conto, as considerações da criança a respeito da notícia não chegar, do que pode estar acontecendo… Tudo funciona. O final é demais, o protagonista se tornando amigo do oriental, o esforço para não chorar na frente do novo amigo. Dá pra entender fácil por que você escolheu esse conto pra abrir o livro. Ele é uma porrada na boca do estômago, de tão bom.

Do Memórias gostei dos diálogos, muito bem feitos. Você apanha essa sonoridade na fala que parece natural. Dá pra acreditar mesmo que a mãe tá vivendo numa conspiração desgraçada, e no fim você vê que a menina estava certa. Confesso que encaminhando pro fim previsto a história ficaria apenas boa, mas com a adição do sub-sub-plot você deu uma reviravolta bacana, deixou marcante.

O Nuvem de cães-cavalos ilustra bem como você consegue trabalhar com o tema do suspense sutil, eu diria, pois prende mas não causa aflição, pelo menos não aquela aflição de segurar no braço da poltrona. Me agrada muito a forma como você brinca com o leitor, brinca com as convicções que ele construiu a partir da confiança depositada no personagem ou no narrador, constantemente desconstruída. E gosto da finalização sem desfecho, sem o connect, aberta. Lembra o Cortázar. Você pinta o quadro, dá todas as pinceladas pro cara entender mas não emoldura, é aquela coisa que tá ali, na tela, mas vive nesse constante perigo da expansão, de nanoformigas prestes a continuar a pintura para o canvas molecular criado na cabeça do leitor.

Pirei no Daimons. Os brinquedos assassinos, maniqueístas, vivos. Novamente, a trapaça com o conforto do leitor, que é estimulante. O vai e vem, que é explorado em vários contos aqui. Os argumentos dos brinquedos, a forma como se esforçam para levar as mortes adiante, a menção a uma organização em que há vários outros brinquedos bem-sucedidos; tudo isso constrói aquele universo rico que é explorado indiretamente no conto, e agrega.

Aço contra osso foi uma loucura só. Lembrei do Borges em suas charadas cíclicas, nos seus labirintos. Ambientes inspirados, diálogos ágeis, misteriosos na medida certa, um final surpreendente, também sem desfecho definitivo. Muito evocativo.

Do Nostalgia eu confesso que curti muito mais o começo que o fim. Gostei tanto do começo, da fuga e do mistério de Vitória, que imaginei um romance todo surgido a partir disso. Mas quando começa a parte mitológica do conto, brincando com deuses e conceitos divinos escritos de forma bíblica, versicular, eu fui um pouco afastado do conto. É muito bem escrito, obviamente, mas não me empolgou como o início, mais tradicional. Talvez isso se deva ao meu desconhecimento do mundo de Cobra Norato, que sei que você desenvolveu em outros lugares.

Déjà-vu foi uma loucura ler na sequência, um quebra-cabeças maluco e denso. Depois que li ele de trás pra frente, na forma cronológica dentro do conto, consegui ligar os pontos que ficaram em aberto. Gostei dessa experimentação estrutural.

A Carta do fim do mundo achei divertida demais, as referências malucas que você insere, todo o caráter nonsense da escrita e o fato do narrador se reconhecer como um verdadeiro babaca.

Cruzada foi outro que me derrubou da cadeira aqui. Que conto foda! Que coisa evocativa! Fiquei ligado na história, naquele ambiente de morte e guerra, na loucura. A descrição é muito efetiva em passar o desespero. “Não demora muito e a matilha do cão negro aparece para reclamar sua cota de carne humana. Saem do lixo e das ruínas, esses animais descontrolados. Chegam para chafurdar no sangue, nas omoplatas e no fígado dos mortos. Chegam para chupar os globos oculares.” Puta merda! A desesperança se completa com a aparente despreocupação total nos assuntos humanos da criatura que você criou.

Futuro presente imagino que tenha saído no Portal da Fundação, você toca nos conceitos do Asimov. Quando a história tem bastante cortes temporais como essa ela engrossa, ganha corpo, ganha background.

Singularidade nua me lembrou em parte Ender’s game, talvez porque eu tenha acabado de ler e trate de crianças também. Achei um conto bem ousado, muita coisa acontecendo. Gostei como os três foram convencidos, tem sacadas muito inteligentes.

Protagonistas e figurantes é outro dos favoritos. O narrador bocudo, que despreza os personagens, que narra ciente de tudo, que vai revelando conexões impensadas, que vai abrindo a narrativa; os cortes são muito pontuais; o cenário é empolgante. Me lembrou um pouco o William Gibson, e curto muito a praia dele.

Já o último, Paraíso líquido, confesso que é uma incógnita. Eu li esse conto de cabo a rabo, às vezes amando e às vezes odiando. Me pareceu uma experiência bem ousada, uma fábula para adultos. Eu tentava arrancar sentidos durante a leitura, e tirei vários, mas todos eram confusos e incertos, e a narrativa seguia num aparente descaso, em cenas aleatórias que iam se juntando e ganhando corpo no fim, com a aproximação da nuvem. Mas ao mesmo tempo que queria amassar o livro eu continuava lendo, preso na narrativa simples e confusa e contraditória. Segui a saga de Líquido e o fim simbólico, místico, cíclico, me deixou encucado. Foi aquela coisa de não saber realmente o que pensar, mas me deixou refletindo. Não sei qual era o seu objetivo com essa história, mas ela provoca alguma coisa, não sei bem o quê, mas provoca.

No fim reafirmo o que disse no começo: o livro é um caldeirão experimental. É um apanhado de contos que versam sobre grandes temas. Foi uma viagem meio amalucada, meio incerta, meio à deriva, mas acredito que foi exatamente a sua intenção: desconcertar o leitor, provocar, empurrar e puxar, sacudir. Dar uma refeição de alto nível, uma amostra das discussões existentes no universo da FC com a sua roupagem, seu estilo, sua marca. É uma obra que satisfaz, que confunde, que provoca.

Juntar a experiência deste livro com a do Sozinho no deserto extremo me deixou bastante curioso pra conhecer o seu novo romance (lembro apenas que você comentou ser numa temática meio cyberpunk; aliás, tem algo previsto já?) e também me fez querer conhecer muito o trabalho anterior, como Oliveira, de que conferi comentários em alguns lugares, o Poeira: demônios e maldições.

É isso, Luiz.

Sigo aqui, lendo e conhecendo mais dos mestres da literatura, engordando o referencial, e escrevendo também. Em outra ocasião te mando alguma coisa que bolei nos Flash fiction. Mas acho que este e-mail em particular já está grande que chega.

Um grande abraço!

Ricardo Santos

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