Luiz, o seu texto é absolutamente delicioso! Em estilo, em criatividade, em originalidade das ideias e sua fundamentação teórico-prática, em sua erudição – que nos educa –, em suas dicas e exemplos e em sua total clareza poética (é um texto muito claro, sem deixar de ser lindo – associo aqui poética à beleza). Meus comentários serão às vezes testemunho, às vezes sincero elogio, às vezes propostas de temas para pensarmos juntos.
O primeiro capítulo, Falas na sala, tocou em pontos que ainda eram, para mim, obscuros. Por exemplo, a “crença no poder formador dos ateliês”. Eu nunca havia pensado, ou melhor, sentido deste modo a experiência do ateliê. Pensei que seria algo burocrático, do tipo, isto é conto, agora escrevam – algo entre o manual e a lição de casa. E qual não foi a minha surpresa em vivenciar algo completamente diferente nos encontros de terças-feiras na Casa Mário de Andrade!
Você pondera que “não é possível ensinar a escrever bem, mas é possível ensinar a não escrever mal” (isto deveria se tornar uma citação sua). E isto ficou muito claro quando, no meu primeiro texto, houve a crítica do bem comportado e artificial. Lembro de você me dizer que as pessoas não falavam daquele jeito. Minha tarefa era, doravante, “sujar meu português”. Parece que fui bem-sucedida com o segundo texto. Daí para a frente se iniciou um processo muito louco de experimentações, e o aprendizado de dividir com os colegas, ouvindo críticas ou elogios – tudo isso magistralmente orquestrado pela sua excelente capacidade de ouvir e conduzir. E com isso cumprir a tarefa de “suprir de leitores o escritor diletante”.
A segunda tarefa proposta, mais difícil, foi a de “encontrar a nossa voz”. Isso, só mesmo com o tempo. De minha parte, fico na experimentação absoluta, tentando gêneros e estilos, até que a tal voz apareça. Mas o legal é que, se eu te entendi bem, ela não precisa ser unívoca, ela pode ser plural, polifônica, subversiva, enlouquecida até!
Minha ambição não é, honestamente, chegar nesta voz. Nem sei se eu conseguiria. Em filosofia o caminho está parcialmente trilhado. Mas em literatura sou, e gostaria de ser sempre, diletante. Mas a filosofia também é uma literatura… tudo isso é muito dialético!
De resto, o seu uso de apoio-partitura, armadilhas-ilusões, e outras expressões que tais, me lembraram o estilo da tradução da Ilíada, por Haroldo de Campos. Diga lá, há um nome para esta aglutinação tão interessante de palavras? Acho um recurso perfeito!
Em Cabeça feita você discorre lindamente sobre como “começamos a ver o mundo como literatura”, “quanto mais lemos, mais nos transformamos no que lemos”, o que lembra Borges e a força “fisicamente transformadora”. A relação é visceral, do mundo através da poesia (da literatura), da poesia através do mundo. Sabe que eu sempre senti isso? Desde pequena. Eu tinha um verdadeiro medo de ler livros, pois me sentia como que invadida por eles. Daí eu selecionava com muito cuidado o que eu deixaria invadir meu cérebro, meu coração e meu corpo. Só fui perder este medo nos últimos anos.
Mas, em Cabeça feita, ou na cabeça se fazendo, você propõe uma anarquia completa e total. “Quem sou eu?” “Quem eu quiser, várias vezes por dia”. E, ler você, seus textos, e ouvir as falas no Ateliê, é uma experiência deste ponto de vista rodopiante, radiante, sujo, fedorento, anárquico e ciclônico – para não dizer titânico!
“Não somos indivíduos, somos enredo”. Já faz tempo que percebi, com a filosofia, que as coisas são discurso, e são um universo, e não podem ser apreendidas sempre da mesma maneira, sob pena de se perder de vista aspectos muito ricos da experiência. E a gente jamais conseguiria, como você propõe, juntar Asterix e Admirável mundo novo.
No capítulo 3, Que é poesia?, é delicioso o modo como você apresenta o enigma da esfinge para, em seguida, desmontá-lo em sua estrutura, e remontar a questão, pois “errado estava o monstro”. Penso ter percebido aí uma característica sua: você se apropria da tradição e a renova, trazendo novos conteúdos consoantes com a sua proposta anárquica que é, por paradoxal que pareça, muito bem estruturada. É um processo de pensamento dialético, e um estilo que surpreende positivamente seu leitor.
Sobre as Anotações sobre a crônica não há muito o que dizer, o texto é claríssimo – outra excelente característica sua. E é nas Reflexões sobre as antigas reflexões sobre o conto que somos apresentados ao contemporâneo, ao “mundo dos vivos” – a melhor definição que já ouvi, acaba com toda a ambiguidade. Não vamos falar de definições mas de etiquetas, que ajudam a “identificar temperamentos”. Esse é o olhar que propicia desfrutar o contemporâneo. Mas acredito que sirva também para olharmos o passado – se considerarmos que tudo se reinventa num eterno presente. Que tal?
E, mais uma vez, você dá seu toque pessoal, como pensador, filósofo e escritor e, ousaria dizer, teorizador da literatura, ao acrescentar às três categorias da ficção, personagem, enredo, espaço, mais dois elementos, linguagem e tempo.
Neste momento, como em muitos outros ao longo do texto, me parece que você está fazendo mesmo uma teoria literária apesar do fato de nos ter advertido, desde o início, que não era esse o caso. Mas penso que você está fazendo isso pelo seguinte motivo: você faz reflexões sobre o contemporâneo, sobre o que as pessoas vivas estão escrevendo e refletindo, e isso, de falar sobre o tempo atual, é algo muito difícil. Dizem que só com muito distanciamento temporal se pode falar de algo. Começo a acreditar que você contradiz este dogma. E você não apenas descreve o que está ocorrendo na literatura hoje, como normatiza algumas aspectos e dá chaves de leitura e interação. E isto vai de encontro a um desejo meu quando me inscrevi no Ateliê: o desejo de contemporaneizar-me. Você me indicou o caminho!
O que mais eu poderia dizer? Eu poderia parar de comentar agora mesmo, pois seu texto é simplesmente genial, perfeita harmonia entre forma e conteúdo. Ou será que esta harmonia poderia também ser subvertida? Começo a pensar que isto poderia ser muito interessante… E em Encontro e desencontro este caminho parece ser possível.
Mas se não for uma teoria literária que você está construindo, sem dúvida é uma nova crítica cultural, que está em gestação e cuja compreensão de todos os elementos do contemporâneo, “por ora, podemos apenas intuir”, como você diz em Profetas contemporâneos. Excelente título por sinal. Você é bom nisso! Mas é em Nem sempre os grandes escritores são bons escritores que você esbanja seu talento e sua erudição – ainda bem, pois assim ficamos mais bem informados, com mais referências, e aumentamos nossa lista de livros para ler e pesquisar!
Com sua erudição e seu estilo, em Tipologia do escritor você nos ajuda a pensar, ou seja, a ler, e nos fornece categorias para tal. E ainda propõe um divertido exercício em festas de escritores. Farei esse exercício lá na filô – estou precisando deixar mais divertida toda aquela sisudez! É a temática da liberdade que define o tom do livro. Tudo isto não é uma tábua dos saberes; divirta-se com estes saberes, ria deles, use-os, abuse-os. Você pode! Eu posso! Será que consigo?
Um tema importantíssimo que você não deixa de lado é discutido no capítulo 20, Literatura infantil: apenas para menores?. É um capítulo muito bonito. Você lembra do silêncio e de sua importância, da formação de leitores e do livro-livro como máquina de sensibilização. Penso – ou passei a refletir a respeito – que os livros infantis também devem fascinar/encantar os pais/adultos, pois eles lerão para seus filhos e isto tem que ser uma atividade agradável.
Por outro lado, estive pensando sobre um tema que você pôs em questão na oficina, sobre o fato de a literatura juvenil estar agradando mais aos leitores adultos do que a literatura adulta, e isso poderia ser indicativo de uma infantilização, ou algo assim, dos leitores mundiais. E, depois de ler seu capítulo, fiquei com a seguinte ideia: a literatura juvenil tem se desenvolvido tanto que, pela sua alta qualidade, está conquistando os leitores adultos. Talvez estejamos vivendo o “século das crianças e dos jovens”, depois de eles terem sido tão ignorados na literatura e nos direitos humanos por tantos séculos. E, se os livros infantis passam a ter gravuras cubistas e impressionistas, que jeito mais saboroso de apropriar-se da tal cultura da humanidade!
O que você acha desse meu otimismo?
Os Dez mandamentos da literatura infantil é um dos capítulos mais tocantes e é um belo exercício de como ser um ser humano. Me faz lembrar a frase do dramaturgo húngaro Georg Tabori, que teria dito que “o ator é um ser humano profissional”. Isso vale para muitas outras áreas.
O capitulo 21, Alexandre Dumas e a guerra dos livros é fascinante. Engana-se quem pensa que “os livros são criaturas amistosas”! Penso que não são nem entre eles, nem entre o livro mesmo, consigo mesmo, algumas vezes.
E você termina com uma narrativa comovente sobre a sua experiência com as presidiárias em O escritor e as presidiárias. Você descreve muito sensivelmente sobre o processo de passar do particular à individualização, que começou logo no segundo encontro, e de como você conduziu isso através de temas-tabus, para que elas chegassem ao mais íntimo de sua vida como pessoas, não como presidiárias, e compartilhassem, lembrassem, rissem de si mesmas e da vida. Me comoveu. Foi você, num belo exercício de ser humano!
Parabéns pelo trabalho bem feito. E, obrigada por compartilhá-lo!
Aqui me despeço com um beijo.
Guta
[ Guta Girolamo é apaixonada por muitas coisas, mas principalmente por filosofia e literatura. Atualmente é aluna do mestrado na USP e às terças-feiras reúne-se com o coletivo As Lontras Daquela Hora, na Casa Mário de Andrade. ]