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Futuro presente: laboratório de ficção científica

22/04/2012

laboratoriofc

Coordenação: Luiz Bras

O laboratório tem por objetivo estimular, de maneira livre porém disciplinada, a produção de bons textos de ficção científica, em prosa ou verso. As atividades práticas de redação e leitura crítica realizadas em sala buscam o aprimoramento da escrita literária individual. Os textos produzidos pelos participantes serão analisados à luz do que há de melhor na ficção científica estrangeira e brasileira.

Público-alvo: escritores diletantes (poetas e prosadores), com obra ainda em formação, estudantes e pessoas interessadas em aprimorar suas habilidades no uso da linguagem literária.

Carga horária: 18 horas.

Duração da oficina: seis encontros.

Quando: dias 15, 22 e 29 de maio e 5, 12 e 19 de junho. Das 18h30 às 21h30.

Número de participantes: Vinte.

Onde: Sesc Belenzinho. Rua Padre Adelino, 1.000. Belenzinho. São Paulo.

Caosvisão policromática

14/04/2012

Ele foi descrito por Will Self como “um polímata criativo com uma integrada visão político-filosófica” e como “um grande escritor, talvez o maior vivendo hoje neste arquipélago”, e por si mesmo como “um gordo, míope, careca e cada vez mais velho andarilho de Glasgow”. Escritor e artista gráfico pouco conhecido entre nós, o escocês Alasdair Gray é o autor de um dos romances mais interessantes da década de 80, justamente seu livro de estreia. Publicado no Brasil em 2001, a exatos vinte anos de seu lançamento, Lanark: uma vida em quatro livros (tradução de Renato Aguiar, editora Record) pertence à família das narrativas de grande alcance, totais, que entrelaçam harmoniosamente as mais variadas disciplinas: artes plásticas, filosofia, literatura, história, matemática, física, política, mitologia, religião, psicanálise etc.

Não podia ser diferente: Lanark é um épico pós-moderno, vale também dizer, um antiépico, se o leitor quiser compará-lo com os clássicos do gênero, como A divina comédia, de Dante, ou Guerra e paz, de Tolstoi. Enquanto o épico clássico, em verso ou em prosa, nos oferece uma cosmovisão positiva, a visão abrangente de um cosmo sociopolítico, o épico pós-moderno nos oferece o contrário disso: uma cosmovisão negativa, a visão abrangente de um caos sociopolítico. Ou seja, uma antiépica, a caosvisão de um universo insólito administrado pelo nonsense.

Lanark está dividido, como promete o subtítulo, em quatro livros e, de quebra, um prólogo, um interlúdio e um epílogo. Porém, recusando a ordenação convencional, o romance não começa no Prólogo, tampouco no Livro um. Ele começa no Livro três. “Quero que Lanark seja lido numa ordem mas finalmente pensado em outra”, afirma o autor ficcional (um dos personagens de Gray), perto do final do romance. Sendo assim, a seqüência determinada pelo autor empírico (Gray) é: Livro três, Prólogo, Livro um, Interlúdio, Livro dois, Livro quatro e Epílogo. Porém ainda não é tudo. Uma nota na página 588 confirma algo que o leitor já desconfiava: o Epílogo desempenha ironicamente o papel de Prólogo e o Prólogo é na verdade uma ficção autônoma, um conto destacado do corpo maior do romance.

Alasdair Gray realiza essas abruptas torções narrativas sem jamais confundir o leitor. Melhor dizendo, sem jamais confundir o leitor acostumado a longos mergulhos no oceano da ficção científica, da literatura fantástica e do realismo mágico. Ter convivido durante anos com a obra de Kafka, Borges, Ray Bradbury, Campos de Carvalho, Beckett, Ionesco, Philip K. Dick, Cortázar e García Márquez me preparou plenamente para o universo bizarro de Alasdair Gray. Universo que dialoga direta ou indiretamente com o dos autores citados, trocando matéria e energia, porém sem jamais pôr em risco sua própria originalidade.

A aventura começa in medias res, como foi dito. Estamos numa cidade pobre, fria e sombria chamada Unthank, que nunca recebe plenamente a luz do sol. Lanark (nome que me lembra l’anarchie, em francês, do grego anarkhia) é um outsider sensível e íntegro, com ambições literárias. Ele está na cidade há pouco tempo, mas não sabe como chegou aí. No Café Elite ele conhece um grupo de jovens desocupados liderados por Sludden e se envolve amorosamente com uma garota chamada Rima. Porém Lanark é acometido por uma doença grotesca, que transforma as pessoas em dragão. Em suas perambulações, ele chega ao cemitério da cidade e encontra uma grande boca no cimo de um morro. A boca lhe diz: “Eu sou a saída.” Lanark mergulha nela e desaparece de Unthank. Depois de atravessar um canal apertado e úmido, semelhante ao canal vaginal, ele renasce em outro lugar do universo criado por Gray: no instituto.

Distante da pobreza proletária de Unthank, o instituto é uma organização muito bem aparelhada, freqüentada por cientistas e políticos, muitas vezes por cientistas-políticos, gente pertencente aos círculos mais altos do poder. Lanark chega em frangalhos, chega envelhecido quase dez anos, e é cuidado pelos médicos do instituto. Mas logo entra em conflito com um dos figurões locais, professor Ozenfant. A desavença acontece quando Lanark reencontra Rima, agora transformada em dragão, e a salva da morte, devolvendo-lhe a forma humana. Os dois começam a namorar. Desejoso de conhecer seu passado, Lanark é atendido por um oráculo: uma entidade incorpórea, que é pura voz. Depois de contar a própria história (o Prólogo), o oráculo conta a história de Lanark, que anteriormente se chamava Duncan Thaw.

Mudam o nome, o cenário e o enredo, mas o protagonista continua exatamente o mesmo: Duncan é um outsider sensível e íntegro, de origem modesta, massacrado pela asma, pelo desejo sexual mal sublimado e por forças sociais e políticas avassaladoras. Sua paixão também é outra: o desenho e a pintura. Estamos agora em Glasgow. O Livro um e o Livro dois são um romance de natureza realista, psicológica, confessional, dentro do romance maior, de natureza fantástica. Duncan é o alter ego de Gray, e sua história de angústia e queda, carregada de reflexões estéticas e metafísicas, tem muito da biografia do próprio autor. Por que Gray resolveu juntar na mesma obra dois romances aparentemente desconectados? Ele mesmo brinca sobre isso, numa nota de rodapé, dizendo que “um livro pesado chama mais a atenção do que dois leves”. Gracejo à parte, é óbvio que a história de Lanark e a de Duncan não estão desconectadas. Os dois romances são diferentes apenas na superfície. No Livro um e no Livro dois o mundo objetivo, a Glasgow real, é manchado o tempo todo pelo mundo subjetivo, pela fantasia delirante de Duncan. As duas cidades, Glasgow e Unthank, não são tão diferentes assim.

Finalizada a história de Duncan, contada pelo oráculo, a narrativa volta a Lanark, Rima e o instituto. No Livro quatro os acontecimentos se precipitam, as situações incomuns vão se acumulando cada vez mais rápido. Enojado com os burocratas e a politicagem, Lanark pede autorização pra abandonar o instituto. Rima decide ir com ele, mas a contragosto. Num dos melhores capítulos do romance, intitulado A zona, só a muito custo o casal consegue atravessar a pé uma zona intercalendárica, onde o tempo e o espaço funcionam de modo imprevisto. Vejo nesse capítulo uma excelente paródia do célebre romance dos irmãos Strugatski: Stalker. O desejo de Lanark era ir a uma cidade onde houvesse sol, mas o pessoal do instituto encaminhou-os primeiro a Unthank, onde acabam chegando mais uma vez em frangalhos.

Lanark e Rima têm um filho. Encontram os antigos amigos, agora bem mais velhos, Sludden entre eles. Também encontram Unthank à beira de uma catástrofe ecológica causada pela cobiça de certos empresários e governantes. A fim de salvar a cidade da devastação iminente, Lanark aceita representar Unthank numa importante assembléia dos Estados do conselho. Nada dá certo, tudo fracassa: amor, política, existência. É nesse ponto que o herói do romance — um herói trágico — leva um papo bastante franco e esclarecedor com o autor ficcional. Lanark termina seus dias cercado pela guerra fratricida. Coerente com a vida pouco convencional que levou, sua morte não é nada convencional. É a faísca que faltava pra incendiar o leitor, provocando a inevitável catarse.

Esse foi apenas o resumo do enredo, da grande estrutura narrativa. Eu ainda poderia dizer muita coisa sobre os outros aspectos literários, mas as resenhas muito longas costumam ser chatas. Nada foi dito — nem será — sobre o estilo de Alasdair Gray, a doçura de certas descrições, o lirismo demoníaco de outras, os diálogos pontiagudos, o humor negro, a ironia, os intertextos. É verdade, os intertextos… Se algumas passagens do romance parecem familiares, não é preciso forçar a memória nem recorrer ao google. O próprio Gray tratou de fornecer um Índice de plágios, que podem ser de três tipos: plágios em bloco (bloplag), embutidos (emplag) ou difusos (diplag). O romance termina no capítulo quarenta e quatro, mas há notas referentes aos capítulos seguintes, do quarenta e cinco ao cinqüenta, inexistentes. Essas notas sugerem, apenas sugerem, um conflito cósmico contínuo, sem conclusão visível.

Pra finalizar a resenha, direi apenas que está esfericamente enganado quem pensa que esse escocês é talentoso somente na criação de grandes estruturas insólitas repletas de simbolismo esotérico. Essa não é toda a verdade. Gray é especialmente hábil em perceber no cotidiano os detalhes luminosos que a maioria das pessoas não percebe. Os fatos mais corriqueiros não resistem ao seu olhar. Em tudo o que as pessoas consideram sem importância, sua argúcia detecta com extrema facilidade os lampejos mais interessantes.

Se fosse dar início a uma série de resenhas intitulada Livros de que (aparentemente) quase ninguém gostou, a primeira resenha seria esta. Apesar de bastante conhecido e amado no mundo anglófono, Lanark: uma vida em quatro livros parece não ter despertado muito interesse nos brasileiros. Procurando por aí, não encontrei nenhuma resenha da edição tupiniquim, nenhuma citação em artigos jornalísticos ou acadêmicos. Tampouco em debates ou colóquios ouvi alguém citar Lanark com o entusiasmo que o romance merece. Se não tivesse ganhado um exemplar de presente de Roberto de Sousa Causo, que conheceu pessoalmente Alasdair Gray numa convenção de ficção científica — aproveito pra deixar meu mais sincero agradecimento —, suspeito que eu continuaria ignorando até hoje a existência desse romance fabuloso.

Mais dois pequenos grandes horrores

13/04/2012

Continua crescendo a Pequena coleção de grandes horrores, coletânea de minicontos que estou escrevendo na fila do banco ou na sala de espera do dentista (locais muito apropriados para a criação de historinhas insólitas). Duas novas narrativas bizarras foram publicadas recentemente, uma na revista Lama e a outra no Coletivo Claraboia.

O cheiro do pensamento (ilustrado por Hafaell Pereira)
Temporada de caça (ilustrado por Teo Adorno)

Delírios de um autor inventado

08/04/2012

A jornalista e escritora Katherine Funke publicou em seu blogue uma bela crônica sobre a coletânea Paraíso líquido, acompanhada por uma ótima entrevista. Essa é a segunda dobradinha crônica-entrevista da série Entrevista de Investigação. A primeira, publicada no domingo passado, foi com o escritor Renato Tardivo. Atenção ao lema do blogue: “sem pressa e sem tempo a perder”. No dia em que vocês conhecerem melhor Katherine e melhor ainda a literatura de Katherine, verão que esse lema faz todo o maravilhoso sentido.

Traições e falsificações

04/04/2012

O novo best-seller de Umberto Eco, publicado trinta anos depois de O nome da rosa, emula os folhetins de Alexandre Dumas e Eugène Sue.

Feito de páginas de diários íntimos, O cemitério de Praga (tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, editora Record) pede leitores com senso de humor, de preferência com senso de humor negro. Nessa narrativa suntuosa e detalhista como um espetáculo do Cirque du Soleil, o grotesco está em toda parte.

A trama se passa principalmente na segunda metade do século 19, entre Turim, Palermo e Paris, e é cheia de conspirações envolvendo garibaldinos, bonapartistas, maçons e judeus.

O protagonista é um falsário italiano, depois francês, chamado Simone Simonini. “O único personagem inventado”, segundo o autor. Todos os outros, saídos dos livros de História, “existiram realmente, e fizeram e disseram o que fazem e dizem no romance”.

Simonini é um glutão calhorda, mas divertido e sedutor, que odeia os judeus, as mulheres, os maçons, os jesuítas, os comunistas, os próprios pais e a vida em geral. Para complicar mais as coisas, ele parece sofrer de dupla personalidade.

O eixo principal da trama é o antissemitismo e as falsificações históricas, entre elas os documentos do Caso Dreyfus e Os protocolos dos sábios de Sião. Cada nova trapaça de Simonini e seus comparsas revela um pouco dos artifícios mais usados por estadistas e propagandistas famintos de poder. De ontem e de hoje.

Gravuras retiradas de publicações da época do enredo povoam o romance, reforçando o simulacro de folhetim. São ilustrações em traço ordinário, às vezes caricatural, acompanhadas de vinhetas explicativas, obedecendo ao (mau) gosto popular.

A ficção de Umberto Eco, teórico importante da moderna cultura de massa, sempre esteve mais do lado dos integrados (literatura de entretenimento) do que dos apocalípticos (alta literatura).

Em Apocalípticos e integrados (1964), Eco já defendia a “relação dialética, ativa e consciente, com os condicionamentos da industrial cultural”. No tribunal da alta cultura, seus divertimentos eruditos jamais aceitaram sentar no banco dos réus.

No ranking dos romances de Umberto Eco, o melhor ainda é O nome da rosa, imbatível. Porém O cemitério de Praga certamente divide o segundo lugar com o não menos interessante O pêndulo de Foucault, de 1988.

[ Publicado originalmente no Guia da Folha de outubro de 2011 ]